Existe espaço para infância na rua?
- Laura Kronbauer
- 18 de out. de 2017
- 6 min de leitura
Depois de passar a manhã na escola, era hora de terminar a lição de casa, encontrar o coleguinha e correr para rua. Pique bandeira, queimada, pique esconde, pular corda, andar de bicicleta e tantas brincadeiras que passaram de geração em geração para ensinar a conviver, competir e, principalmente, se divertir. Pareceu familiar essa rotina pra você?
Talvez você já tenha reparado que as ruas não são mais um lugar para crianças. Ficou mais difícil encontrá-las brincando ou andando sozinhas pelas ruas das cidades brasileiras, principalmente, das de médio e grande porte. Juiz de Fora se enquadra nesta situação. Ruas antes ocupadas por crianças, nos dias de sol e de chuva, perderam espaço para o medo e insegurança dos pais.

“Eu não tenho coragem de deixar as minhas filhas brincando na rua”,
afirma a jornalista Elisângela Baptista, mãe de duas meninas de 10 e 11 anos. Com medo da violência, ela não deixa as filhas saírem de casa sozinhas, nem para ir a escola. Realidade diferente daquela vivida por ela na infância.
“Eu morava em uma casa próxima a uma rua onde tinha movimento de carro e ônibus, mas a gente brincava de tudo, pique bandeira, queimada. Isso era o dia inteiro, até a hora de dormir. Hoje, não existe essa possibilidade, por causa da violência, da quantidade de veículos nas ruas e da falta de tempo dos pais e das crianças”, avalia Elisângela.
Insegurança
Entre 2005 e 2015 houve um aumento de 10,6% no número da taxa de homicídios no país. Em 2015, foram registrados 59.080 homicídios. Isso significa 28,9 mortes a cada 100 mil habitantes. As informações estão no Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Para a doutora em educação, Hilda Micarelo, a violência é uma realidade e os números comprovam isto. Em Juiz de Fora, entre janeiro e setembro deste ano, foram registrados 100 homicídios.
“Hoje eu ando nas ruas de Juiz de Fora, a cidade onde nasci e cresci, agarrada na bolsa, olhando para os dois lados, sempre em estado de alerta. E, de alguma maneira, passamos isso para nossos filhos”, conta a jornalista Elisângela.

O medo e a insegurança também são sentimentos vividos diariamente pela estudante Thaís Peres. Diferente da sua experiência na infância, a jovem hoje com 26 anos, percebe que ser criança nos tempos atuais exige mais cuidados.
“No meu bairro tenho receio, principalmente, por causa da droga. Acredito que hoje está muito mais perigoso do que na minha infância. Nesta época, nunca houve uma restrição devido a segurança. Minha mãe me passava algumas instruções, como não falar com estranhos, ficar atenta com os carros e não se afastar muito de casa. Nós não tínhamos muita coisa a oferecer, naquela época, enquanto criança. Hoje uma criança brincando na rua, com certeza, tem um celular, por isso, é algo mais visado”, reflete Thais.
Espaço compartilhado
O trânsito também torna as ruas pouco amigáveis. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2013, 1.755 crianças de até 14 anos morreram vítimas do trânsito, deste total, 30% corresponde aos atropelamentos.
“Precisamos de uma cidade mais disponível para a infância, que pense nas crianças e nos idosos, porque a cidade, hoje, é pensada para o adulto produtivo, em facilitar sua vida e seus deslocamentos. A criança não está na rua porque ela não é pensada para esse público, não existe condição de viver a infância neste ambiente hostil”, avalia a professora graduada em educação. A ocupação do espaço publico, na concepção da professora, é um exercício de cidadania.
“Pensar nesses espaços é pensar em possibilidades de exercício da cidadania pela criança, passando pelo brincar”, analisa Hilda. “A questão não é levar a brincadeira para dentro de casa, e sim os pais saírem de casa para brincar comas crianças em outros lugares, porque se nós vamos recuando cada vez mais para o espaço privado,vamos ficando cada vez mais confinados. É preciso criar essa vida comunitária.”
São as experiências nos espaços públicos que Elisângela busca aproveitar com as filhas. Nos finais de semana, a jornalista procura algumas opções para apreciar esse momento com brincadeiras em locais abertos, como parques e o campus da UFJF.
“Enquanto estou trabalhando, não posso deixar minhas filhas sozinhas na rua brincando, no final de semana é que elas se divertem com este tipo de atividade. Quando elas experimentam, as meninas se sentem maravilhadas, mas, infelizmente, esta prática não faz parte da rotina delas. Sempre que há possibilidade, fazemos com que isso aconteça”, conta.
Na avaliação da psicologa Elisângela Pereira, apesar das crianças não experimentarem com muita frequência as brincadeiras de rua, elas sentem vontade de aproveitar esse espaço na infância. Entretanto, devido ao medo da violência, elas acabam bloqueadas de aproveitar esses locais.
"Normalmente, as crianças tendem a ser mais medrosas em relação as ruas, lá fora é um ambiente completamente desconhecido. Já são crianças que estão crescendo com essa característica, diferente das crianças de duas gerações atrás", explica a psicologa.
Aprendendo a brincar

“O brincar é uma prática social, ao contrário do que costumamos imaginar, que isso é natural das crianças, brincar se aprende. Crianças de diferentes culturas brincam de diferentes maneiras e elas vão brincar com aquilo que a sua cultura oferece como alternativa”, pondera Hilda.
As brincadeiras nesses espaços podem contribuir para a formação da criança. Esta é a avaliação da psicóloga Elisângela. “A criança que consegue brincar na rua hoje consegue desenvolver uma série de habilidades, como o corporativismo e empatia. É excelente para trabalhar todas essas habilidades. Além disso, quando a criança está brincando na rua, ela está exercitando, fazendo algum tipo de atividade física, diferente de quando ela está exclusivamente dentro de casa. Nestes espaços, as brincadeiras são mais pacificas e paradas, porque não requer muito movimento devido aos espaços serem menores.”
Em comparação com algumas gerações atrás, a rua possibilitava às crianças maior convívio entre elas, sendo considerada um espaço de liberdade corporal e comportamental. Para Hilda, “o interessante das ruas é que as crianças decidiam sobre o que brincar, resolver os seus conflitos, negociar as suas posições e as regras do jogo. O brincar na rua tinha como um elemento enriquecedor da brincadeira essas possibilidades de uma infância menos monitorada. Isso é importante para que a criança possa construir seus próprios valores, sem a dependência de um adulto que resolva os seus conflitos e o brincar está associado com isso, com uma possibilidade de exercício de maior autonomia”.
A falta de espaços públicos para brincadeiras como pique bandeira, pique esconde, corre cutia, entre outras, pode, atrapalhar o desenvolvimento da criança. Segundo a psicologa Elisângela, "a perda desse espaço pode ser negativa porque as crianças estão sendo cada vez mais individualistas, ficando cada vez mais tempo dentro de casa, sozinha nos apartamentos, então elas se acostumam a ter tudo para elas, como o computador e a televisão. Ela perde um pouco desse senso de divisão, de saber distribuir."
Realidade virtual
"As crianças saíram das ruas e foram direto para os jogos eletrônicos, lá em casa acontece de maneira muito rara. Elas não tem o hábito de brincar com jogos eletrônicos, são brincadeiras mais lúdicas. Proporcionamos isto até por saber do espaço que a gente gostaria que elas tivessem na rua. Levamos para dentro do muro, porque ali não tem perigo", conta a mãe da Valentina e da Clara Luz, Elisângela Baptista.
Na concepção de Hilda, a inserção dos meios eletrônicos, ainda na infância, está diretamente relacionada com uma prática cultural dos próprios pais e familiares. "A criança esta presa na tecnologia porque o adulto está. O adulto colocou isso no centro da sua vida e sobra para criança seguir esse modelo. Este é um problema da infância contemporânea. Temos uma realidade que são menos crianças e mais adultos, o que faz com que elas sejam monitoradas o tempo todo, inclusive durante as suas brincadeiras."
Segundo dados levantados pela demógrafa Ana Amélia Camarano e pela socióloga Daniele Fernandes, pesquisadoras do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, de 2004 a 2014, a parcela de lares de casais sem filhos no total de domicílios pulou de 13,5% para 18,8%. No mesmo período, o número de casais com filhos no total de lares recuou de 54,8% para 44,8%. Em dez anos, também ganharam espaço os lares ocupados por uma única pessoa.
Esses número resultaram em uma população com menos crianças e mais idosos. De acordo com informações do último Censo, divulgado em 2010, no país, 7,6% da população são crianças, com idade até 5 anos, número menor que os registrados pelo levantamento em 2000 (9,8%) e em 1991 (11,5%). Em Juiz de Fora, das 516.247 pessoas, 98.554 são crianças de 0 a 14 anos. Mesmo com esta quantidade expressiva de crianças no município, ainda é difícil encontrar espaço para a infância nas ruas.
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